Não há dúvida que a lei foi engendrada por um fanático a quem mostraram estatísticas de mortes e doenças originadas pelo vício de fumar e virou toda a artilharia contra os dependentes do cigarro.
Há quantos anos ocorreu este episódio! Eu ainda fumava e já larguei a habituação tabágica (a palavra bonita para dizer vício de fumar) há mais de vinte anos.
Passou-se uma época, de várias semanas, de grande carestia de tabaco, tendo os pontos de venda ficado totalmente exauridos, ao ponto de não terem nem para vender avulso. Eu, porque tinha certas afinidades junto de distribuidores, sempre ia sacando tabaco que saciasse a minha gulodice aspiradora e mesmo para suprir a falta a algum amigo.
Estava, a dada altura, num café da terra e entrou lá o ti Aventino do Gorro, homem já muito idoso e muito debilitado e de cara a espelhar tristeza. Foi ao balcão e pediu ao atendedor que, pelas almas de quem lá tinha, lhe arranjasse um maço de cigarros. Não tenho, senhor Aventino. Dispense-me ao menos um cigarrito que já não fumo há dois dias. Não aguento mais. Era mesmo de partir a alma ouvir o desespero daquele ancião que só saiu de casa, arrastando-se com muita dificuldade, pelo cigarro.
Ouvi a conversa e, do bolso falso baixo esquerdo do casaco tirei o maço que lá tinha, com bastantes cigarros ainda. Risquei o fósforo para lhe acender o primeiro e disse-lhe que levasse o resto, que lhos oferecia eu. E poupe isso que as coisas estão ruins, acrescentei à guisa de conselho. Ainda hoje me não fogem da memória os olhos de felicidade e de gratidão daquele homem.
Assisti também ao pedido angustiado, em pleno quarto de hospital, de um doente, muito doente que morreria poucos dias depois, de um cigarro. Dá-me um cigarro, fulano! Não trouxe cigarros e você sabe que não pode fumar. Dá lá tu, oh Sicrano! Eu já sabia p'ró que vinha e deixei o tabaco no carro e você sabe que o cigarro o prejudica. Porra, deixai-me fumar um cigarro que eu não me importo de morrer a seguir. Por consenso dos presentes foi-lhe dado um cigarro que ele aspirou, deixando fugir pelos olhos o prazer e a alegria inerente. A gente como estes, que se não podem deslocar, eventualmente internados em estabelecimentos de idosos, que tratamento se dar? É legítimo roubar-lhes estes últimos e simples prazeres, onde quer que estejam?
Eu não sou fumador. Agora. Fumei desalmadamente durante muitos anos e deixei quando entendi que devia deixar, sem que ninguém mo impusesse e sem recorrer a qualquer terapia de conforto. Jurei a mim mesmo que não fumaria mais e, sinceramente, não foi tão difícil assim. O último maço esteve comigo na mesinha durante 6 anos em pose de desafio, bem ao lado do isqueiro.
Entrou em vigor a Lei 37/2007, conhecida como a Lei anti tabaco, mas que designo como LEI ANTI FUMADORES, que, ao invés de serem considerados doentes dependentes, são olhados como quase assassinos e a quem, um destes dias vão obrigar a usarem chocalho para serem evitados. Como os leprosos nos idos tempos. Para a lei, mesmo que se consuma o dobro dos cigarros, não faz mal. É preciso é que se fumem onde o parteiro/pai da lei entende e nas condições que ele quis impor.
Se me dizem, ou eu sei, que determinado espaço não oferece segurança que baste, por precaução e para minha defesa, não entro, ou decido assumir o mesmo risco dos que já lá estão. Em qualquer espaço público onde haja o risco ou certeza de haver fumo (de cigarro ou outro), se receio sentir-me mal, não entro e procuro outro local. É esse o conceito que tenho da liberdade de escolha. Se no café onde costumo ir se começar a, todos os dias, discutir em altos berros seja que tema for e o barulho me incomodar, eu deixo de lá entrar. Ou suporto os berros e até entro na discussão.
Parece não restar dúvida de que esta lei, confusa e de interpretações difusas ao ponto de, depois de aprovada pelos deputados, irem ocorrer debates, no parlamento, guiados pelos seus fautores, para explicar aos deputados (que já aprovaram o que não leram ou não entenderam) o sentido e suporte da lei. Todos a deviam ler, para verem a dimensão da confusão.
Amos Oz, o grande escritor israelita, Nobel da Literatura e grande lutador pela paz entre Israel e Palestina, num livrinho titulado "Contra o Fanatismo" (ed. Asa) diz a certo ponto: "…o fanatismo está em todo o lado. Com modos silenciosos, civilizados (às vezes, acrescento eu). Está presente à nossa volta e talvez também dentro de nós. Conheço bastantes não fumadores que o (a você) queimariam vivo por acender um cigarro ao pé deles. Conheço pacifistas, alguns dos meus colegas do Movimento da Paz Israelita, desejosos de dispararem directamente à minha cabeça por eu defender uma estratégia ligeiramente diferente da sua (deles, pacifistas) para conseguir a paz com os Palestinianos". O ex-padre Nuno Higino (não fumador) disse, há dias, em entrevista que "A esquizofrenia em relação ao tabaco é um exemplo de Estado repressivo".
Não há dúvida que a lei foi engendrada por um fanático a quem mostraram estatísticas de mortes e doenças originadas pelo vício de fumar e virou toda a artilharia contra os dependentes do cigarro. Porque se não lembrou de propor, e mereceria o meu aplauso, que fosse proibida a comercialização de tabaco em todo o país? Como é com o haxixe e outras ervas. Sabe-se que se fuma, mas é proibido o comércio.
Porque se não deixa que existam estabelecimentos (cafés, pastelarias, restaurantes, bares, dancings, salas de jogo, etc. etc. etc.) onde possa fumar e outros onde o fumo seja interdito? O cliente entra, ou não, consoante aceita ou suporta o fumo. Já agora uma pergunta ingénua. Em lugar destinado a fumadores, é permitido que um não fumador lá esteja?
♦ José Pinto da Silva
In Terras da Feira Online.